Histórias de Dona Guiomar
escritas por Nereide S. Santa Rosa
Abril 27, 2001
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O piano, a linguagem do coração. 

Os sons melodiosos de um piano costumavam cortar as tardes  bucólicas do velho Itaim. E não eram poucos...

Só no quarteirão onde eu morava (e ainda moro) poderíamos citar  várias casas onde o piano era peça fundamental na sala de estar...não pensem em peça meramente decorativa... mas sim um verdadeiro instrumento musical...tocado  com amor e carinho, emoção  e sensibilidade.

A música erudita e de qualidade era valorizada e apreciada na sociedade. Tocar um instrumento musical era fundamental para demonstrar  a bagagem cultural de uma   pessoa. Aprender a tocar piano fazia parte da boa educação e da formação das crianças.

Houve um tempo em que o piano era tão importante na sociedade que os saraus eram constantes. Os pequenos concertos nas residências eram comuns e as fábricas de piano cresciam e prosperavam.

As escolas de música eram de alto nível e fazer uma matrícula numa delas era um objetivo quase inatingível para quem não tivesse bom ouvido e boa apreciação musical. O Conservatório Dramático Musical na Avenida São João, aqui em SP, era considerado a melhor escola de música da cidade. As pessoas que lá se formavam seguiam a carreira de concertista ou como professora, uma profissional considerada de alta qualidade.

E quantas professoras de piano haviam pelos bairros?  

Muitas e muitas...aqui mesmo no Itaim Bibi, uma das mais famosas era a Dona Renata que morava na João Cachoeira. Ela não dispunha de horários e datas para ensinar a todos que a procuravam...

Havia também a Dona Diva na Rua Clodomiro Amazoas que lecionou e formou muitas crianças que hoje, já crescidas, não moram mais no Itaim. 

E surgiam mais e mais placas nas casas por todos os bairros dizendo: “Leciona-se piano”. Os imigrantes italianos, por exemplo,  costumavam incentivar seus familiares a tocar instrumentos. Só na minha família tive duas professoras de piano, um cunhado que tocava acordeão e várias sobrinhas que sabiam tocar piano.

O objetivo do aprendizado não era a formação de concertistas, apenas completar a boa educação das pessoas. As pessoas  gostavam de ouvir o piano ou então tinham prazer em se apresentar a seus familiares...isso já bastava para compensar os anos de dedicação e estudo. 

E como era difícil...nove anos, no mínimo, para obter o direito de lecionar...muitas pessoas estudavam quatro ou cinco anos e paravam ...só para saber dominar o instrumento. Mas, quem estudava o curso completo enfrentava muita disciplina e exigência. Quantos exames!   Quantas horas de estudo! 

Isso acontecia porque as pessoas não eram tão imediatistas e  não se preocupavam em só ter uma profissão. A formação integral e cultural do indivíduo era o que contava, tanto quanto a qualidade do seu aprendizado e uma visão abrangente do contexto da sociedade.  Hoje as pessoas pensam em se especializar e a educação geral, mais abrangente, acaba sendo prejudicada.  Hoje as crianças tem que aprender inglês logo cedo para sua profissão futura...ou natação para exercitar o corpo... ou judô para enfrentar a violência...mas estudar nove anos como antigamente é coisa rara...apenas os mais dedicados e habilidosos chegam lá...talvez, por isso sejam tão valorizados... 

A música de qualidade acabou sendo relegada a segundo plano... afinal, para muitos, a  música erudita não faz parte do cotidiano...Mas, saibam que estudar música favorece a inteligência...mexe com os dois hemisférios do cérebro... apenas isso já deveria ser  suficiente para que incentivássemos nossos filhos e netos a apreciar e, quem sabe, tocar música de boa qualidade.

Outro dia estava ouvindo minha neta tocar piano e as recordações começaram a surgir com força. Os sons sempre nos trazem lembranças, muitas vezes boas, outras más.

Mas, o som daquele piano é especial para mim.

Eu o comprei em 1945 para que minha filha mais velha pudesse iniciar seus estudos...

O piano passou de minha filha Neusa para a minha outra filha Nereide e agora atende minha neta Priscila.

Foram anos e mais anos de convivência sonora...algumas vezes meio repetitiva com aquelas escalas e exercícios intermináveis de habilidade no teclado...outras vezes, momentos especiais com as valsas e chorinhos que minhas filhas tocavam com prazer e alegria.

Foram anos e anos de caminhada acompanhando minha filha Nereide ao Conservatório Musical Beethoven, andando de ônibus pela antiga Rua Iguatemi ainda de paralelepípedo até a Rua Pinheiros (não existia a Avenida Faria Lima). Audições musicais, festas, exames, coral, aulas  intermináveis. Minha filha Nereide se dedicou ao curso de piano e, no ano de 1969 se formou e fizemos uma linda festa no Buffet Torres onde hoje é o Museu da Casa Brasileira. Bons tempos, diria eu... Mas, eu conto tudo isso para mostrar a importância que a música teve em nossas vidas... especialmente para minha filha que iniciou a partir dali, sua carreira profissional com a música sempre presente e sendo fundamental. 

E as noites e tardes comprometidas com o estudo do piano foram recompensadas plenamente. Por que...a cultura adquirida é o maior prêmio que uma pessoa pode ter... e essa, ninguém tira de você... Se tiver oportunidade, procure estudar um instrumento musical...da flauta doce ao piano de cauda, a música  será sempre a linguagem do coração. 

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