Histórias de Dona Guiomar
escritas por Nereide S. Santa Rosa
Novembreo 02, 2001
Índice das Histórias já publicadas

Lendas e “causos” 

Pelas ruas do velho Itaim, o medo e a fantasia eram parceiros constantes dos moradores. Principalmente das crianças. Não existia Halloween.  E nem precisava.  A escuridão e o silêncio convidavam a imaginação dos moradores a encontrar pelas esquinas um vulto ou ouvir um gemido ao longe.

         O vento assobiando entre as folhas da bananeira no quintais confundia as mentes e os olhos de quem já, volta e meia, assustava-se com facilidade. E as lendas contadas na soleira da porta ao cair da tarde, ou depois do jantar, contribuíam para noites assustadoras, escuras, às vezes até tempestuosas, que traziam pesadelos aos pequenos moradores.  No dia seguinte, caminhar pelas trilhas que cercavam as poucas casas e chácaras que nos protegiam era uma tarefa difícil de ser cumprida pela maioria das criancas.  O mato era alto e os caminhos tortuosos nos envolviam   em meio a um ambiente propicio ao medo. Como por exemplo, seguir da Rua do Porto até a Avenida ou, como hoje é conhecida a Rua Joaquim Floriano, era uma aventura e tanto. Inesquecível para os garotos, que com seus passos ainda tão pequenos, suas pernas ainda tão curtas, se transformavam em verdadeiros corredores quando ao cair da noite tivessem que atravessar aquela trilha. O jeito era gritar para que a mãe saísse à porta da casa para esperar enquanto chegavam. Afinal, as luzes que só existiam no interior das casas, era uma espécie de porto seguro para os pequenos.  

               Mas, a verdade é que a imaginação é fértil e muitas vezes nos prega verdadeiras peças. E eu não estou falando dos sustos reais que hoje encontramos pelas ruas da cidade. Estou comentando sobre situações pitorescas que nos levavam a outros  sustos, quase irreais, recheados de fantasia e que depois, com o passar do tempo, se tornavam engraçadas e divertidas histórias. Como certa vez aconteceu comigo e minha filha, ainda pequena, Neusa. Nós fomos visitar uns parentes em Mogi das Cruzes. Naquele tempo, década de 40, essa viagem era cansativa e havia necessidade de se pousar nas casas dos parentes. E foi assim que fizemos. Evidentemente que quando se está em uma casa estranha, tudo é novidade. Enfim...lá fomos nós dormir no quarto da filha da dona da casa que gentilmente nos cedeu a cama. Mesmo assim, ficamos um pouco apertadas , mas como se dizia antigamente “Uma noite passadoura é...”  e nos acomodamos finalmente. Passado algum tempo, já noite alta, tudo estava quieto e silencioso. Aquele  silêncio de cidade do interior, com alguns piados de coruja ao longe, farfalhar de folhas pelo quintal, assobio do vento na janela. Quando, de repente em meio a total escuridão, um vulto enorme irrompeu pela janela que estava meio entreaberta. Dando um grande salto, o vulto pulou em meio a todas nós que estávamos dormindo. Ao sentirmos sua presença , pulando em meio as cobertas, acordamos gritando. -  O que era aquilo??? O que havia acontecido??? Seria um fantasma puxando nossos pés ou um lobisomen que veio nos morder?  Afinal podíamos sentir que o vulto tinha pêlos, rabo e grandes garras. A nossa primeira reação foi procurar uma lâmpada para acender...só que, a que existia, ficava pendurada por um fio em um simples soquete. Rapidamente ficamos em pé em cima da cama, tateando no escuro onde estava o fio pendente do teto com a lâmpada...Até que alguém colocou o dedo no tal soquete. E foi só um clarão! Saiu uma faísca e levamos um enorme choque... em meio a um curto-circuito. Enquanto isso, o vulto se esquivou pelo chão e foi embora pela porta do quarto que se abriu com a minha prima adentrando apavorada. Depois de tanta gritaria, confusão e correria, a explicação chegou, calma e tranqüila: existia um gato que normalmente entrava pela janela para dormir no quarto...e o resto vocês podem imaginar...  O tal gato  levou um tremendo susto e nós nunca mais nos esquecemos daquele dia. Esta história acabou se tornando uma lenda contada e recontada muitas vezes, ao som de risadas familiares.

            Pois as lendas são fruto de histórias contadas pelos mais velhos, como os pais, os avós, tios, por gerações e gerações. Hoje entendo a sua importância, pois através delas a transmissão cultural entre as famílias e as comunidades permanecesse viva, dinâmica, alegre, apesar de, muitas vezes, serem assustadoras. Claro que as condições de vida daquele tempo contribuíam para a transmissão de lendas como o saci, o lobisomen, a mula sem cabeça, fantasmas de todos os tipos que nos cercavam, mesmo que fossem um simples gato caseiro.  Até mesmo postes que cresciam a nossa frente eram mágicas tão intensas que os adultos acabavam acreditando.  Aliás ainda hoje vivemos de ilusão e a mundo mágico sempre nos cativa... Quantas historias de magos, bruxas, fadas ainda fazem sucesso... As novelas com seu “faz de conta”  que nos distrai no cotidiano da televisão... As histórias dos livros com personagens que assustam, encantam, enternecem nossa vida... É assim que se faz literatura e que se mantém viva a nossa cultura... Através de lendas, personagens, tradições, costumes e crenças. E estas historias que nos cercavam quando crianças deram origens a outras. Histórias que se originaram de lendas tão antigas que se perderam no tempo. Hoje sabemos que o nosso Saci Perere que percorria (ou percorre ainda, não sei) as florestas do Brasil foi originado dos duendes pastorís europeus. Que os fantasmas e o nosso famoso Boitatá têm origem nas emanações de luzes dos cemitérios que na Europa eram comuns existirem em meio à cidade. Que o Lobisomem também existia no imaginário popular europeu desde os castelos medievais.

        Enfim, essa fantasia deliciosa que permeia nossas vidas desde a infância deve permanecer nos encantando e nos assustando de forma saudável e divertida. Pelo menos assim estaremos mais fortes para agüentar as tristes histórias da vida real.

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