Histórias de Dona Guiomar
escritas por Nereide S. Santa Rosa
Maio 05, 2000
Índice das Histórias já publicadas

Certas coisas ficam guardadas em nossa memória de maneira indelével. Sons, imagens e perfumes que nos remetem a situações passadas. Despertadores de lembranças. Independentes de tempo e espaço, sem datas ou convenções. Apenas emoções guardadas e inevitavelmente preservadas .

Como, por exemplo, o gostoso perfume de chocolate que se espalhava pelo bairro. A Fábrica de Chocolates Kopenhagen sempre se destacou em nossa comunidade. Principalmente pelo que sentíamos quando passávamos em suas calçadas, perto das janelas onde inúmeros operários se dedicavam, com carinho artesanal, a preparar os famosos bombons . Bem diferente dos odores que encontramos hoje, exalados pela fumaça escura e poluidora dos ônibus que trafegam pelas nossas ruas.

Como certos sons que se tornaram inesquecíveis. Sons antigos de nosso bairro. Sons de um tempo em que as carroças cruzavam nossas ruas, de um tempo que as crianças brincavam livremente e as donas de casa conversavam entre as cercas dos quintais.

Sons dos animais e dos passarinhos que faziam questão de visitar as árvores frutíferas em nossas chácaras. Sons do bonde 45 lá na Chácara do Japão, nosso único meio de transporte para a cidade. Descia a atual Avenida Europa até a Praça do Vaticano onde fazia o "balão" para retornar à cidade. A Chácara do Japão fazia divisa com a Chácara Itaim, na altura da atual Av. Nove de Julho.

Imagens que complementam os sons e sons que complementam imagens.

Retornando mais alguns anos no tempo, lembro-me das vacas deitadas à sombra dos pinheirais nos finais das tardes douradas de outono, na esquina da Rua Urussui com a Leopoldo ou então os porcos e as galinhas soltas pela Rua Urussui, fuçando o chão e espalhando o barro. Imagens bonitas como o roseiral da chácara do Seu Bauleo na João Cachoeira ou das palmeiras que ladeavam a entrada da antiga Casa Bandeirista.

Imagens que me remetem a meus irmãos e eu brincando nas poças de chuva e no morrinhos que haviam na rua de terra batida em frente a nossa casa. O cheiro de terra molhada, o som da chuva nos telhados e janelas, e a imagem da neblina da manhã de sol no dia seguinte. O som dos cântaros de leite, usados nas ordenhas das vacas, nos indicava que um novo dia estava por vir . Logo após já podíamos ouvir o ranger da carretilha do poço indicando que as tarefas de casa se iniciariam.

A noite, as imagens se misturavam com as luzes. A luz do candeeiro de querosene. E os vaga-lumes que flutuavam pela escuridão. Faziam-nos imaginar que as estrelas do céu tivessem vindo nos visitar. Certa vez, capturei um deles e o esfreguei em minha roupa para também se transformar numa estrela brilhante, mas o cheiro que exalou destruiu o meu faz-de-conta. As luzes das noites escuras do Itaim tinham algo especial: o luar . Sem cerimônia, invadia os espaços de nossa casa nas noites de lua cheia. Deixávamos os "escuros" (venezianas) abertos para receber o ar fresco da noite, sem preocupação, apenas sentindo a brisa noturna e as sombras da noite. Sentíamos e ouvíamos o silêncio.

Éramos, simplesmente, moradores, livres e felizes, de um espaço ainda cru e rústico, mas que, mesmo assim, nos permitia imaginar um futuro o qual sempre acreditamos ser de felicidade.

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