Histórias de Dona Guiomar
escritas por Nereide S. Santa Rosa
Maio 19, 2000
Índice das Histórias já publicadas

Ser criança no velho Itaim

Morando entre chácaras e flores tínhamos a sensação de sermos livres. Itaim. Década de 20. As crianças daquele tempo podiam explorar os caminhos, freqüentar as casas e os quintais dos amigos e vizinhos, brincar na rua, subir em árvores, descobrir a imaginação e o faz-de-conta. Brincávamos com tocos de madeira e pedras e eles se transformavam em carruagens e princesas. Não existiam brinquedos industrializados ou se haviam, não nos era possível adquirir. Nós mesmos construíamos nossas brincadeiras. Tal como o meu pequeno irmão Acácio que caçava besouros para atrelá-los nas suas carrocinhas de brinquedo feitas de caixas de fósforos e botões. As rodas, os cantos infantis, pular corda na qual eu era uma especialista, apostar corridas pelas ruas de terra, pular sela, jogar bola, pião e gude. Enfim brinquedos e brincadeiras de quem tinha liberdade de ação . Não havia perigos imediatos, violência. Nossas mães estavam sempre por perto nos orientando e guardando, porem podíamos explorar o ambiente e conviver com os amigos. Claro que pequenos acidentes aconteciam: brincando de esconde-esconde fui passar na cerca de arame farpado e prendi o lábio... ui, lembro até hoje da dor. Outra vez subi numa árvore para chupar mexerica e queimei a mão em uma taturana . Nada mais natural para quem era curiosa como eu.

Durante o dia trabalhávamos na chácara cuidando das verduras, as quais eu vendia nos finais de semana na porta do açougue do Seu Américo na Rua Joaquim Floriano. À noite nos reuníamos em frente de nossa casa para nos divertir. A necessidade de espaço para brincarmos de caracol (ou amarelinha) fez com que abríssemos uma clareira, carpindo o mato. Fizemos um grande espaço com a enxada... mais tarde esse espaço ajudaria na abertura total da Rua João Cachoeira esquina com a Rua Leopoldo C.Magalhães Júnior.

João Cachoeira x Leopoldo Couto de Magalhães

Esquina da Rua João Cachoeira com a
Rua Leopoldo Couto Magalhães Júnior em 1940
Arquivo Pessoal . 

Explorar o ambiente e descobrir atividades era uma necessidade para nós, crianças.

Como certa vez , quando fui passear de barco no Rio Pinheiros. No final da Rua do Porto, atual Rua Leopoldo Couto Magalhães Júnior, ficava localizado um porto de areia. Aliás haviam vários portos ao longo do rio. Ele não tinha o mesmo percurso que hoje apresenta. Era tortuoso e ficava localizado na altura da atual Rua Lopes Neto. Suas margens também atingiam o clube Pinheiros que o utilizava para esportes náuticos. Sua água era tão limpa que os barqueiros as vezes a bebiam. Os chorões em suas margens ajudavam a embelezar a paisagem . O Rio Pinheiros era belo. Naquela única vez, lá estava eu, no meio do rio, dentro de uma barcaça que carregava areia, com várias crianças, inclusive o meu irmão. Os garotos faziam questão de puxar os ramos dos chorões que encostavam na superfície do rio provocando o balanço do barco. Na verdade, não foi uma experiência muito agradável...

Em outra ocasião inventamos um pequeno passeio para satisfazermos uma curiosidade. Queríamos ver de perto um carro de boi . Escutávamos o seu ranger e a nossa imaginação ia além da realidade. Como seria esse tal de carro de boi? O som vinha da estrada de Santo Amaro. Então fomos caminhando até lá. Atravessamos o Córrego do Sapateiro, onde hoje está a Av. Juscelino Kubistchek, passando por um tronco de árvore colocado como ponte. Tremi de medo só de pensar em cair lá embaixo. O córrego era muito sujo e feio.

Chegamos ao local: era uma espécie de ponto de parada obrigatória dos tropeiros de Santo Amaro. Ficava localizado onde hoje é o Hospital São Luiz. A estrada de Santo Amaro era na verdade um caminho de terra estreito ladeado de mato. Havia uma casa térrea com uma grande varanda, onde os animais eram amarrados. E então vi, pela primeira vez, um carro de boi. Achei fantástico. Os bois atrelados ao carro, as grandes rodas de madeira, o tropeiro guiando, segurava uma vara e o berrante . E o som... grave, forte, porem suave e terno. Inesquecível.

Ao lado daquela casa havia uma chácara com uma Santa Cruz. Minha tia, que havia nos acompanhado, aproveitou aquele passeio e deixou alguns santos quebrados lá, como era costume antigamente.

Bem, outros passeios viriam e eu continuaria a brincar e a descobrir coisas. Sempre tive curiosidade e atenção a tudo o que acontecia a minha volta. Acho que ainda não perdi esse costume...

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