Histórias de Dona Guiomar
escritas por Nereide S. Santa Rosa
Setembro 08 de 2000
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Do Itahim a Santos

FotoPassaram-se seis anos desde a nossa chegada ao Itaim-bibi até que um novo vizinho viesse morar próximo a nossa casa. A família de Angelo Squillaro , vinda do bairro da Bela Vista, adquiriu um terreno na Rua João Cachoeira quase a frente de nossa chácara. Era uma grande lote que ia desde a Rua Iaiá até onde hoje está a Casa Fortaleza. Eles se tornaram nossos grandes amigos. O Sr Angelo era casado com D. Fortunata e tinha as filhas Madalena, Serafina, Hermelinda e o filho Beto.

Logo fiquei amiga de todos, mas especialmente de Hermelinda. Amigas inseparáveis. Amigas de verdade. Até mesmo quando tínhamos de ir pagar mensalmente as contas da energia elétrica de nossas casas no centro da cidade, lá íamos as duas juntas atravessando o Viaduto do Chá (foto), conversando e rindo bastante.

Melinda, como nós a chamávamos, era cinco anos mais velha que eu. Juntas, costumávamos ouvir seu gramofone. Tocando o maxixe, o charleston e as canções italianas do Tito Schipa., nós nos divertíamos dançando pela sala . Éramos jovens, eu ainda com doze anos, sem preocupações, apenas com alegrias.

A amizade entre nossas famílias foi crescendo. Eu costumava ir até a sua casa para auxiliar nas anotações do Seu Angelo. Alem disso, eu também tomava conta do Beto, ajudando D.Fortunata .As amizades daqueles tempos eram assim... troca de favores, envolvimento com os problemas familiares, auxiliando nas dificuldades do dia a dia . Quantas vezes os vizinhos trocavam até mesmo pequeno animais : um dava um frango ou galinha e o outro o presenteava com copos de leite ou verduras. Enfim, todos se preocupavam com todos.

Mas, o tempo foi passando e Melinda ficou noiva em 1931 e se casou com Rodolfo no ano seguinte. O casamento aconteceu na sua própria casa, na João Cachoeira. O padre veio da Bela Vista e nós, com muito capricho, ajudamos a montar o altar na sala. A cerimonia foi muito bonita. E então, Melinda e seu marido foram morar em Santos. Quando ela se despediu, nos fez prometer que iríamos visitá-la em quinze dias. E foi assim que eu fiz a minha primeira viagem a outra cidade. Do Itahim a Santos.

O ano era 1932. Para uma garota de quatorze anos, sair pela primeira vez do Itaim-bibi e viajar a Santos era uma aventura e tanto. E lá fomos nós. Eu, a Dona Fortunata, o seu filho Beto , o primo Angelino, todos moradores do Itaim. Saímos daqui logo de manhã , e tomamos o bonde até a Estação da Luz. Como era bonita! Imensa, com grande movimento e agitação. Fiquei encantada. Subimos no trem, que logo partiu. Naquele embalo gostoso que só um trem consegue, chegamos em Paranapiacaba. Paramos. Logo coloquei a cabeça para fora , procurando ver tudo o que acontecia. Ficamos lá um bom tempo até chegar a cremalheira. Na verdade, uma locomotiva especial que era presa ao trem para poder controlar a descida da Serra do Mar. E que descida! Fantástica. Desfiladeiros. Mata fechada, sem destruição. A beleza da natureza na sua forma mais pura. Corri para o último vagão e sai na sua plataforma. Fiquei lá quase toda a viagem vendo e sentindo tudo que passava a frente de meus olhos, do meu rosto, da minhas mãos. Imaginava tocar as cachoeiras como fios de prata em meio a mata. O vento me embalava e fazia me sentir como se flutuasse nas nuvens. Soltas. Livres. As pontes eram somente os trilhos. Por entre eles, podia-se ver os desfiladeiros imensos, as copas das árvores, as cores da mata, os pássaros voando e se assustando com o passar da máquina. Naquele instante eu era dona daquele tempo, daquele espaço, daquela emoção.

Depois de cinco horas , chegamos a Santos. No meio do caminho uma construção bem antiga tinha chamado a nossa atenção: uma espécie de pousada ainda do tempo do Império. Creio que o caminho da estrada de ferro seguia pela antiga Estrada de Santos dos tempos imperiais.

Melinda já nos esperava na estação. Fomos a sua casa no José Menino e ficamos lá hospedados por três dias. Durante esse período nós fomos conhecer os pontos turísticos da cidade. E finalmente , o mar. Fomos ao Gonzaga, onde só existia o Hotel Atlântico quase a beira-mar. Não havia rua que separasse a praia das casas. O trilho do bonde passava na areia, quase junto as ondas. Também não se encontrava ninguém. Tudo deserto.

Logo entrei no mar com roupa e tudo. Queria sentir a água salgada e o vaivém das ondas. Fiquei com a roupa toda molhada. Então eu e Melinda fomos alugar os famosos maiôs . Isso mesmo, aqueles maiôs antigos , pretos que cobriam até o joelho. Realmente uma roupa muito engraçada. E assim passamos o dia inteiro na praia.

Nos outros dias fomos visitar a biquinha de São Vicente, o Monte Serrat e o Guarujá. Lugares que com o tempo se tornaram corriqueiros e comuns. Para se chegar ao Guarujá , tomamos um trenzinho que passava pelo meio de um mangue. Tinha um só vagão, mas era muito chique com cadeiras de palhinhas e lustres. No Guarujá só existiam alguns palacetes e nada mais.

Depois dessa primeira viagem voltei a Santos em 1944. Já estava casada com Nicola e com uma filha, a Neusa, e continuava morando aqui no Itaim-bibi. Mas um fato curioso sobre essa segunda viagem chama a atenção. Estando no período da Segunda Guerra Mundial, o simples fato de viajar até Santos era controlado pelo governo. Nós tivemos que tirar um documento especial. Uma espécie de passaporte. Esse documento chamava-se salvo-conduto. Vejam só.

Salvoconduto

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Os anos foram passando e nossas viagens a Santos foram tantas que não consigo nem contar o número correto. Até a década de 70, esse era nosso local preferido para diversão. Pude apreciar as mudanças dos caminhos a Santos: a antiga e estreita estrada de Santos com suas curvas , a construção da Via Anchieta, e finalmente a Imigrantes. E, quantas vezes, lá pelos idos dos anos 50, sempre acontecia uma parada no meio da serra. O nosso carro esquentava e pronto, esse era o momento de apreciar a paisagem ou então descansar da "longa" viagem.

Hoje viajamos com grande facilidade e segurança, mas ainda observo que alguma coisa não mudou: vejo que, em certas ocasiões, o tempo de viagem é igual ou até maior, do que a minha primeira viagem a Santos com trem , cremalheira e tudo há setenta anos atrás... o progresso as vezes nos engana....

Mas a emoção da minha primeira viagem, ficou para sempre dentro de meu coração. Nunca mais tive a oportunidade de sentir tão de perto a beleza da Serra do Mar. A felicidade é feita de pequenos momentos que guardamos na mais profunda lembrança. Temos a capacidade de rememorar as alegrias, assim nos protegendo das tristezas e das amarguras. Viajar é um desses momentos inesquecíveis. Seja para uma pequena cidade perto de sua moradia, seja para outro país. Viajar é descobrir conhecimento, espaços, imagens, sons e cores. Compartilhar momentos felizes com seus familiares.

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