Histórias de Dona Guiomar
escritas por Nereide S. Santa Rosa
Junho, 30 de 2000
Índice das Histórias já publicadas

A enchente de 1929

Em tempos de seca, nada melhor do que se falar em água.

E ela chegou. Devagarinho.

Sorrateira e silenciosamente.

Avançando.

Destruindo.

Invadindo espaços.

Ninguém poderia imaginar ...

Nenhum aviso, nenhum sinal.

Inicialmente , a surpresa.

Depois a constatação de um fato terrível.

Inevitável.

Iniciava-se uma enchente.

A enchente do Rio Pinheiros.

O ano era 1929.

E o rio, calmo e tranquilo , corria entre os bancos de areia, os campos e as árvores frondosas. Entre espaços que também eram ocupados por algumas chácaras. Seus moradores, simples e humildes, não imaginavam o que estava para ocorrer.

E naquele dia, tudo aconteceu.

O rio se transformou . Enfurecido, avançou sem piedade por sobre ruas, trilhas, casas, animais, plantações.

Não havia chuva... a calma e o sol reinavam. Então...

A notícia logo correu por entre os quatro cantos do bairro.

"A água está invadindo tudo"... diziam todos.

Os moradores que perceberam logo, corriam para lugares seguros, mais altos. Mas, a dúvida pairava... até onde ela iria? Como salvar seus bens, seus animais , suas casas?

O pânico se instalou...

Outros moradores ainda permaneciam em suas casas. Tentando encontrar explicações. Tentando resgatar o pouco que tinham...

Imaginem que a água só parou de subir quando chegou na altura da atual Rua Clodomiro Amazonas. Dali até a o sopé dos morros da Cidade Jardim, tudo ficou embaixo d’água.

Um visão inacreditável!

"...a enchente arrancou o trilho do bonde, derrubou andaimes e destruiu uma vila de casas em construção..."

enchente

A casa de minha mãe se transformou em ponto de encontro de vizinhos e amigos. Todos querendo ajudar, participar.

Começamos a verificar se os nossos conhecidos estavam bem... E foi então que soubemos que havia uma família presa em sua casa . Dona Augusta estava retida em meio a água que já alcançava sua cintura. Como ajudar? Não havia resgate, polícia, bombeiro...

Estávamos entregues à nossa própria sorte.

Foi então que lembramos que a minha tia possuía um barco de tamanho razoável em sua casa. Não demorou muito e meu tio já apareceu, remando-o. Bem depressa, subi no barco para ajudar a resgatar a família. Até hoje eu questiono o que uma menina de onze anos poderia ajudar... mas, vocês não acham que iria perder aquela oportunidade? E lá fui eu , no barco em meio a enchente.

A água já estava na altura da atual Rua Atílio Inocenti... E a Dona Augusta morava na Rua Jusseape, que ficava logo em seguida ao Córrego do Sapateiro. Portanto, para chegarmos até lá, teríamos que atravessá-lo... Mas não dava para enxergar aonde ele se encontrava... E o perigo estava ali. Fomos seguindo, corajosamente, enfrentando a água.

E então, de repente, o barco começou a balançar e a balançar.

Percebemos que estávamos sobre o córrego e a correnteza era forte.

Eu olhava para todos os lados. Via redemoinhos, galhos de árvore boiando, e pequenas ondas. Mas, com sorte e com a habilidade do remador, conseguimos atravessar o córrego. Logo chegamos na casa de Dona Augusta. Desconsolada, havia perdido seus bens e suas plantações. Mas, estava feliz por podermos ajudá-la.

Retornamos pelo mesmo caminho, porem com mais sabedoria, pois já conhecíamos os lugares mais adequados para remar.

Foi um dia inesquecível.

Um dia que todos se uniram e compartilharam a tragédia.

Um dia no qual sentimos a solidão e o desprezo das autoridades competentes da época, que não preveniram e nem organizaram formas de atender a comunidade.

Afinal para eles, a posse de terras era mais importante que os homens e mulheres que lá viviam. " ...Até onde a água chegou, a Light colocou marcos de posse, alegando estar conforme a concessão feita pelo Governo do Estado em 1927, que a autorizava canalizar, alargar e retificar, aprofundar os leitos dos Rios Pinheiros e seus afluentes" .

Água para delimitar terras.

Lágrimas para delimitar vidas e sonhos .

Passaram-se três meses ...

O Rio Pinheiros foi retificado e desviado para o seu atual leito.

As famílias desabrigadas, acomodadas em casas de amigos começaram a retornar . A desolação era total.

Mas o Homem sempre surpreende e se supera.

Ontem como hoje, os moradores do Itaim mostraram que é necessário enfrentar as dificuldades e progredir sempre.

Se ontem os problemas eram esses, hoje enfrentamos outros. Cabe a nós sempre acreditarmos e termos a esperança que vamos conseguir. Vamos lutar cada vez mais por uma qualidade de vida melhor.

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