Histórias de Dona Guiomar
escritas por Nereide S. Santa Rosa
Julho, 21 de 2000
Índice das Histórias já publicadas
Bailes e serenatas no Itahim
Quando ouço certas canções e melodias, boas lembranças e fortes emoções renascem com intensidade. O som da flauta e do cavaquinho, do violão e do violino.O som de valsas e tangos, choros e marchinhas.Até mesmo o som das bandinhas. Relembro momentos especiais que ficaram escondidos na memória. Sons do passado que ainda permanecem presentes.
Sob as brumas da noite, vultos se aproximavam.Silhuetas difusas. Sombras pelo chão que tingiam o caminho.Passos cuidadosos que agitavam as folhas, testemunhas da "invasão". Meros disfarces que, aos poucos, se dissipavam.Ao ouvi-los, corria até a janela. Sem abri-la. Apenas para escutar as conversas baixas e surdas dos rapazes do Itaim.
E de repente, a voz do violão tangia a madrugada.Um arrepio de emoção invadia nossa casa e o meu coração. Em meio à neblina, a serenata iniciava. Quantas vezes senti essa emoção... Os jovens rapazes de nosso bairro, nos idos tempos da década de 30, eram românticos...E a música era a sua maior expressão. O violino e o cavaquinho, o violão e o pandeiro os acompanhavam. Cantores amadores, trovadores da noite, menestréis da poesia.
Minha mãe os atendia e servia um café com bolachas, mas eu... Não podia aparecer, apenas deveria ficar escutando, romanticamente, com o coração disparado de emoção.
Os jovens do Itaim tinham por costume fazer serenatas nas portas e janelas das namoradas. Alberto era um deles junto com Nicola, meu namorado, e mais os amigos do clube "Onze Florianos". Eles formavam um grupo de cantores amadores que romanticamente vagavam pela noite cantando e tocando valsas e chorinhos. Tardes de Lindóia, Taí, Morena, Pelo Telefone, Carinhoso, Saudades de Matão, Branca, Rapaziada do Brás e tantas outras. Vozes inesquecíveis inspiradas em Silvio Caldas, Pixinguinha, Francisco Alves, Orlando Silva, Vicente Celestino.
A serenata sempre acontecia após o baile. Tudo era muito fácil e simples: todos os participantes do nosso clube se uniam, cada um trazia um pratinho com doces ou petiscos, e pronto, a festa podia começar. Música ao vivo, de boa qualidade, e logo saíamos dançando pela sala. Era uma alegria só!
O costume de organizar bailinhos já vinha de um certo tempo em nossa comunidade. Enquanto o clube Flor do Itaim existiu, era comum acontecer bailes em sua sede e os jovens iam para lá se divertir sadiamente. Até minha mãe me levou duas vezes. Ela ficava lá sentada com o meu irmão Acácio no colo, enquanto dançávamos. Depois, íamos todos para casa caminhando, e às vezes até mesmo correndo, não sei se por medo ou por brincadeira, pela João Cachoeira. Só a Rua Joaquim Floriano era iluminada e não era muito agradável caminhar pela trilha no escuro.
Quando o clube Flor do Itaim fechou, uma outra opção de lazer chegou ao nosso bairro. Passado algum tempo, como o seu campo estava desocupado na esquina da Rua Bandeira Paulista com Joaquim Floriano, começaram a aparecer circos que se estabeleceram naquele espaço. Ficavam por aqui algum tempo se apresentando para os moradores. Ouvíamos lá de nossa casa, a bandinha tocando e anunciando a função.
Certa vez, eu e Alberto estávamos assistindo a um desses espetáculos. Naquele dia o circo tinha animais vivos, uma novidade para nós daquela época. Estávamos sentados nas arquibancadas de madeira.Assistimos os palhaços, os malabaristas e finalmente chegava a hora da apresentação dos leões. Foi armada uma jaula no centro do picadeiro. Eu comecei a ficar com medo e comentei com o Alberto que achava muito perigoso dividir aquele "espaço" com leões, mesmo com grades entre a gente. Meu irmão concordou e fomos juntos para perto da saída. E foi a nossa sorte. Ao iniciar a apresentação, os leões estavam sendo enviados para dentro da jaula. Foi então que, nesse instante, a grade começou a balançar para trás e para frente. Imediatamente saímos correndo pela saída do circo e não esperamos nem para ver o que estava acontecendo. Muita gente também saiu correndo e gritando. Mas, felizmente o pessoal do circo evitou a tragédia, consertando rapidamente a jaula e cancelando a apresentação dos leões. Ufa, foi um susto só.
Serenatas, bailes, futebol, circos, até que a nossa vida era "agitada", não é?
Algum tempo depois, em meados de 1933 e 1934, chegou o cinema. O primeiro cinema do nosso bairro foi o Cine Itahim, de propriedade de Dona Dulce Borges Barreiros e ficava na Rua Joaquim Floriano com Bandeira Paulista onde hoje existe um posto de gasolina.
O cinema só funcionava nos finais de semana passando seriados. Era um sucesso. Comparando-se com os dias atuais, era como se assistíssemos às novelas de televisão... Só que esperávamos uma semana inteira para saber se o Tarzan salvaria a mocinha dos braços do bandido... Ou, se o cachorro Rin-tin-tin avisaria a família sobre um certo incêndio...As sessões de cinema eram esperadas com comentários e muita agitação... As crianças e os adultos se divertiam a valer, torcendo pelos heróis e vaiando os bandidos em pleno cinema. Ou então chorando aos prantos quando a mocinha era abandonada pelo namorado... Era um momento mágico... Até mesmo surpreendente para nós, que ainda não estávamos acostumados à tecnologia. Mais tarde, chegaram os filmes em longas metragens e os ídolos do cinema facilmente nos conquistaram. Rodolfo Valentino, José Mojica, Clark Gable, Claudette Coubert, Ginger Rogers, e mais tarde John Wayne, o grande cowboy. Fantasias que nos encantavam. Filmes inesquecíveis como "Titanic" (o primeiro), "Casa Blanca", "Tempos modernos", "A Severa", "E o vento levou" (que assisti duas vezes). A magia do cinema cativava cada vez mais o público. O cine Itahim ainda funcionou até a década de sessenta no mesmo local.
O tempo passava, a vida se transformava... Envolvidos no cotidiano dos dias, nem percebíamos que passávamos de criança a jovem, que evoluíamos de bairro-chácara para bairro-urbano com novas e bonitas casas, jardins e ruas arborizadas, comércio tranqüilo, restrito às necessidades básicas dos moradores. O Itaim-bibi na década de 30 já começava a ter ares cosmopolitas. Mas os sons das serenatas permaneceriam, para sempre, escondidos entre as janelas e os corações das namoradas.
Convide um amigo para ler esta matéria
Envie seu comentário à autora deste artigo
Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida, armazenada em sistema de recuperação de dados ou transmitida, de nenhuma forma ou por nenhum meio eletrônico, mecânico, de fotocópia, gravação ou qualquer outro, sem a prévia autorização por escrito da autora.