Histórias de Dona Guiomar
escritas por Nereide S. Santa Rosa
Agosto, 04 de 2000
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Piqueniques paulistanos

Certos costumes se transformam em lembranças na medida que o tempo passa. Costumes de quem usufruiu um linda cidade há quase sete décadas atrás. Costumes como andar de bonde, tomar fartos e saborosos lanches em confeitarias no centro da cidade, ouvir os discursos dos alunos mais famosos em frente a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, nadar e participar de regatas nos rios Tietê e Pinheiros, passear na Praça da Luz ou no Trianon ouvindo pássaros à beira de limpos espelhos d’água, caminhar tranquilamente pelo Viaduto do Chá ou fazer piqueniques nos arredores da cidade.

São Paulo, no início do século 20, era rodeada de lugares agradáveis e bonitos. Até mesmo os artistas se organizavam para fazer pintura ao ar livre, tal como os impressionistas franceses. Pintores como Volpi e Rebolo, do Grupo Santa Helena, excursionavam pelos arredores observando e registrando a natureza exuberante e os campos floridos da cidade.

Hoje nos custa acreditar que houve um tempo que não existia a periferia, com todos os seus problemas e dificuldades.

Mas vale a pena registrarmos que São Paulo era uma cidade agradavelmente bonita. Na década de 30, o centro já era dinâmico, movimentado, com carros e pessoas transitando em meio a construções charmosas como o Edifício Martinelli. Naquelas ruas, víamos surgir uma energia palpitante que a todos cativava. Podíamos imaginar um futuro de progresso e riqueza. Tínhamos esperanças...

Naquele tempo um dos costumes mais tradicionais das famílias paulistanas, principalmente dos imigrantes italianos e portugueses, eram os piqueniques. Aliás, antigamente, as refeições eram momentos muito especiais para as famílias. Ninguém comia rápido um almoço, ou um jantar de forma agitada. Era um momento em que se preservava a união da família .

A organização e o planejamento de um piquenique era algo muito peculiar. Até mesmo um certo ritual era mantido...Tudo feito com seriedade e com bastante antecedência. Em primeiro lugar, combinava-se o número de pessoas, geralmente famílias numerosas com grande número de crianças de todos os tamanhos. Depois escolhia-se o local, que tanto podia ser uma cidade do interior próxima a São Paulo, geralmente com características religiosas, como Pirapora, Aparecida, o Monte Serrat em Santos, e assim por diante. Ou então regiões mais próximas do centro como a Chácara do Japão, aqui bem ao lado do Itahim. Nós, os moradores, sempre víamos muitas famílias italianas vindas do Bexiga em caminhões, atravessarem o córrego onde hoje fica a Avenida Nove de Julho para fazer piqueniques embaixo das árvores e pés de eucaliptos onde hoje se localiza o antigo Colégio Sacre Couer. O espaço era lindo e o grande número de árvores fazia com que o ambiente fosse agradável e acolhedor. O número de piqueniques era enorme e realmente o que chamava mais a nossa atenção era a alegria daquelas pessoas que, descontraídamente, aproveitavam o lazer junto a natureza. Geralmente escolhiam fins de semana ou feriados. O preferido era o de primeiro de Maio ou então a Pascoela, na segunda-feira após o Domingo de Páscoa. De longe víamos as famosas toalhas com xadrez vermelho e branco, e a quantidade de sanduíches diversos, carnes, frutas e bebidas. Tudo isso colocado em grandes cestas de vime. Notava-se até mesmo um local preparado pelo pessoal para se fazer café com uma pequena fogueira rodeada de pedras. O espírito aventureiro e pitoresco que circundava as pessoas ajudavam a compor o ambiente. Talvez o sabor das comidas ficasse até diferente, como se o tempero fosse somente composto apenas pelo envolvimento de todos. Tudo era motivo para risadas e alegria.

PiqueniqueCerta vez nós também resolvemos fazer um piquenique junto com outras famílias do Itaim. Nos reunimos com a família de minha amiga Melinda e seus pais, Dona Fortunata e o Ti’Angelo que eram nossos vizinhos italianos e moravam na João Cachoeira, e ainda a família do Nicola, o meu namorado, que morava na Rua Bibi, e combinamos o passeio. Iríamos a Mogi das Cruzes, mais precisamente em um local chamado "Cruz do Século". Era o ano de 1935 e, para nossa sorte, já existia a primeira linha de ônibus do Itaim para o centro da cidade. Era conhecido como "o "vermelhinho", obviamente pela sua cor!!! Descia e subia a rua Joaquim Floriano, que a essa altura já era calçada com paralelepípedos.

Tomamos o primeiro vermelhinho do dia, carregando cestas e sacolas cheias de frangos e carneiros assados, e as famosas polentas. Saímos logo que o dia amanheceu, animados com a aventura. Depois de tomarmos o pequeno ônibus, chegamos ao centro e seguimos de até Mogi das Cruzes, chegando lá quase na hora do almoço. Imaginem que disposição e força de vontade nós tínhamos para enfrentar a aventura! Lá chegando, encontramos na estação várias famílias e amigos nossos que viviam naquela cidade. Já éramos quase cinquenta pessoas!!!! Descendo do trem tivemos que caminhar por um longo caminho de terra até chegar no tal cruzeiro. Era um local muito alto, cheio de pedras. Evidentemente que quando chegamos as comidas estavam bem frias e os nossos pés bem quentes. Com a animação e a participação de todos, esquecíamos até mesmo dos mosquitos, das formigas e das sacolas pesadas. Esta foto é desse mesmo local, e eu estou entre a minha mãe e o Nicola, encostados na grande pedra do cruzeiro.

O dia inteiro foi muito agradável, mas na volta o cansaço era visível... rostos abatidos e sacolas vazias, pernas doendo e ombros arqueados. Só sei que a chegada ao Itaim, já noite escura, foi um verdadeiro bálsamo para tanta emoção.

Os tempos foram passando e os piqueniques foram desaparecendo...creio que somente alguns de nossos leitores mais velhos podem ter sentido como é um verdadeiro piquenique... Porque, na verdade, um piquenique não se faz. Um piquenique deve ser sentido: na brisa do vento, no cheiro da grama e das flores, na picada das formigas ou no olhar ao azul do céu.

Hoje me vejo, com minha família almoçando nos shoppings pela cidade e permito-me uma reflexão: será que evoluímos ou não?

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