Histórias de Dona Guiomar
escritas por Nereide S. Santa Rosa
Novembro 24 de 2000
Índice das Histórias já publicadas
As raízes de um sonho.
Caminhar entre árvores.
Colher frutas no pomar.
Sentir o aroma das flores e dos frutos.
Assim eu passei a minha infância no Itaim-bibi.
Parece mesmo incrível que há mais de setenta anos eu vivia e morava em uma pequena chácara na Rua João Cachoeira, justamente onde tiramos esta foto no ano de 1939. Eu, já crescida, estou ao lado de minha mãe e da tia Catarina (irmã de minha mãe) e o seu esposo, tio Alberto.
Aliás ainda possuo e convivo com um pedaço desse espaço, desse tempo. Posso ainda sentir a mesma energia de tantos anos atrás...energia que vem da terra. Mesmo que o cenário tenha mudado, é como se as raízes permanecessem para sempre ali...raízes das árvores, raízes de vida, raízes de lembranças.
Meu pai ao construir nossa chácara em 1924 teve uma preocupação : plantar inúmeras árvores frutíferas e formar um pomar farto e bonito.
Evidentemente sua experiência em Portugal facilitou esse trabalho. Já possuía esse conhecimento pois ele e minha mãe moravam na região rural de Portugal e sua infância e juventude tinham sido passadas nos campos e nas montanhas da região de Bragança.
E meu pai caprichou em nossa nova casa.
As árvores não foram plantadas aleatoriamente, a divisão dos espaços do terreno foi pensada de acordo com o tipo de plantação e produção.
E assim, ainda pequena, eu brincava por entre as plantas e frutas, e percebia essa organização. Ano após ano, árvore após árvore, a beleza do pomar desabrochava.
Perto de nossa casa, quatro pereiras cresciam frondosas. A pereira sendo uma árvore com copa alta ultrapassava as janelas, enfeitando o espaço.
Perto do poço , um pé de limão francês era o meu preferido. Adorava sentar no murinho do poço, colher a fruta direto da árvore e ficar chupando o limão com sal... e assim poderia ficar horas, conversando com alguma amiga ou vizinha, ou comigo mesma olhando o céu ou o caminho das formigas pelo chão de terra.
E que lindeza era o caquizeiro! Suas frutas enfeitavam nosso quintal com a beleza digna de uma obra de arte. As suas cores fortes contrastavam com o verde das folhas...exuberantes, tal qual uma natureza morta de Matisse.
Alem disso, era na sombra do imenso caquizeiro que minha mãe descansava todas as tardes, sentada em sua cadeira ...as vezes tirava uma soneca, as vezes aproveitava para fazer pequenos afazeres como remendar nossas meias... Enquanto isso, eu aproveitava para subir em seus galhos e escolhia o mais forte para sentar e apreciar a paisagem... as vezes aconteciam surpresas como quando eu amassei, literalmente, uma enorme taturana com minha mão...foi um grito só e dor que não acabava mais...acho que naquele dia atrapalhei um pouco o descanso de minha mãe!
A cerca de nossa chácara era uma verdadeira cerca viva...amparava os pés de bucha...isso mesmo, aquela bucha que hoje encontramos já ressecada nas feiras e que antigamente servia de esponja para banhos e para a limpeza das panelas.
A parreira então, era especial...um carramachão enorme com os cachos de uvas pendurados como brincos, enfeitando a paisagem e perfumando o ambiente.
Divertido e engraçado era o pé de cidra...uma fruta enorme pendurada em galhos tão, aparentemente, frágeis...mas fortes o suficiente para sustentá-las...E o doce de cidra acabava sendo inevitável...uma delícia !
Claro que não podia faltar a limeira...carregadinha de laranjas-limas, docinhas e fresquinhas...colher e comer era questão de segundos!
Também as mexericas eram muito procuradas...a mexeriqueira com as frutas pendentes em cada galho eram como preciosas jóias, escondidas entre as ramagens...colhê-las era divertido: segurava-se uma taquara com um corte na ponta, onde se pegava o galho da árvore. Quando estivesse preso, era só dar uma torcida e a mexerica vinha para o chão. Rápido e eficiente.
A macieira estava plantada bem próxima a nossa casa. Os seus cachos de maçãzinhas, com casca verde e suculenta polpa clarinha, enfeitavam a janela de nossa cozinha .
E o pessegueiro, então, era a nossa árvore mais farta. Chegava a chamar a atenção pelos galhos pesados carregados de grandes pêssegos vermelhos e maduros que chegavam a esbarrar o chão de terra.
Mas as árvores do pomar eram companheiras da plantação de verduras e legumes. Tínhamos alface, almeirão, escarola, salsa, verduras que nos alimentavam dia a dia ...aliás uma alimentação saudável, sem agrotóxicos ou venenos.
O pé de chuchu, a beira da cerca, também era muito procurado na hora de escolher o cardápio do dia...
Evidentemente que não poderiam faltar os pequenos animais. Tínhamos galinhas e coelhos. O galinheiro ficava no fundo do quintal., fazendo divisa com um terreno do Sr. Jacinto Barbosa ...esse terreno tinha um grande capinzal...e o nosso galinheiro tinha uma pequena portinhola que se abria quando puxada para cima. Todas as manhãs nós abríamos a portinhola e lá iam todas as galinhas e seus pintinhos passear no capinzal...passavam o dia inteiro ciscando por ali e por aqui, e no final do dia se encaminhavam, sozinhas para o galinheiro passando novamente pela portinhola. Parecia até que eram ensinadas...eu adorava esperar o seu retorno vespertino...
Os coelhos, então, ficavam confinados em grandes gaiolas, suspensas do chão.. minha mãe costumava de vez em quando preparar alguma refeição com os pequenos (os "ecologistas" que nos perdoem). Eu tinha uma pequena função quanto aos coelhos...para alimentá-los eu ia até o final da Rua João Cachoeira e colhia ramos e ramos de florzinhas amarelas miudinhas que serviam de refeição para os pequenos coelhos... quase sempre lá vinha eu carregando as ramadas pela pequena trilha até a frente de nossa casa.
Interessante contar que meu pai não plantou em nossa chácara nenhum pé de abacate e manga... dizia-se que a pessoa que plantasse esse tipo de árvores não vivia para colhê-las ...mesmo assim meu pai não pode colher as outras que plantou, pois um ano depois de nos mudarmos veio a falecer.
Passei minha infância e adolescência convivendo com suas árvores, nossas plantações, nossas flores e frutos. Minha mãe cuidou com zelo e carinho do sonho de meu pai. Sonho que permanece. Sonho a que me mantenho fiel, vivendo e morando no Itaim-bibi.
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