Histórias de Dona Guiomar
escritas por Nereide S. Santa Rosa
Fevereiro 23, 2001
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Quando o tempo passa tão ligeiro e nos deixa abstrair emoções de nosso pensamento, ficam apenas as lembranças em nossos corações.
Momentos que nos emocionaram ...momentos que não percebíamos serem especiais. Amizades e pessoas que se foram ...imagens que se transformaram em fumaça que o tempo desgastou. Sinto que ainda resisto, e tenho o privilégio de poder fazer isso, quando ao remexer antigas fotos ou mesmo ao caminhar pelas ruas de meu bairro, sorrio enlevada sentindo aquela saudade gostosa dos velhos tempos da juventude.
Assim eu me senti ao recordar cenas e fatos dos carnavais de outrora. Lembrei-me do primeiro carnaval depois de meu casamento.
Casei-me em janeiro de 1939 e um mês depois, praticamente ainda em lua-de-mel, chegou o carnaval. Nicola, meu marido, fez questão de me convidar para assistir um espetáculo no teatro, um verdadeiro sucesso da época. Chegado o dia esperado , domingo de carnaval, arrumei-me em grande estilo, muito elegante, e lá fomos nós para o centro de São Paulo, assistir um show musical no Teatro Santana...um tipo de espetáculo que eu nunca havia assistido... plumas, paetês, e vedetes famosas como Virgínia Lane e Dercy Gonçalves causavam furor ...mas, esse dia seria inesquecível por outro motivo. Ao chegar em casa, após o show, tivemos uma desagradável surpresa: eu, considerando a importância do convite e um entusiasmo até demasiado pelo passeio, havia colocado um lindo cordão de ouro português, presente de meu falecido pai, em meu pescoço e , ao voltar, percebi que ele simplesmente havia desaparecido...foi roubado durante o espetáculo, com certeza por alguma mão leve muito sorrateira que o retirou sem eu perceber...foi uma tristeza e arrependida, chorei muito. Um fato marcante para mim.
Mas, recordações são assim mesmo...quem não as tem não pode julgá-las...e elas podem ser tão alegres como tristes...
Nos anos seguintes, já com minha filha Neusa crescendo, os carnavais seriam mais divertidos e felizes.
Na década de 40 , o carnaval de rua no Itaim era uma realidade.
Até mesmo uma pequena escola de samba já existia, organizada por D. Dulce Borges Barreiros...eles ensaiavam quase em frente de minha casa, na esquina da Rua Bibi com a Joaquim Floriano.
E chegado o tempo das festas carnavalescas, o ponto de encontro era o quarteirão da Rua Joaquim Floriano que ficava localizado entre a Rua Bandeira Paulista e João Cachoeira. Ali, a festa acontecia. Mas não era ao acaso. Havia o rinque de patinação na esquina ( onde hoje está o Banco do Brasil) e lá o baile era animado, com música ao vivo e frequentado pelos moradores e moradoras da região. Esse baile fazia concorrência a outro, bem em frente, na outra esquina, no Cine Itaim. Durante o carnaval, retiravam-se as cadeiras do cinema, que abria as portas para a rua e o baile corria solto...com muita gente e alegria.
E essa alegria contagiava a todos.
O carnaval do Itaim era familiar e com a participação intensa das crianças com suas lindas e criativas fantasias . Todas se fantasiavam e havia até uma disputa saudável quanto aos temas escolhidos e a beleza de cada uma.
Minha cunhada morava exatamente nesse quarteirão da Rua Joaquim Floriano (onde hoje funciona um bingo) e toda a nossa família, que era imensa, carregava as cadeiras para a frente da casa dela e as colocavam enfileiradas na beira da calçada. Assim podíamos assistir ao conjunto musical , fantasiados com camisa listrada, que desfilava a pé tocando marchinhas. Podíamos ver o desfile de crianças e jovens do bairro, todos fantasiados e também os caminhões cheios de Pierrots e Colombinas que cantavam , aproveitando aquele momento tão especial, de pura alegria. Eu mesma e o pessoal da minha família também usávamos o caminhão de meu cunhado para desfilar . Jogávamos sacos e sacos de confetes, as serpentinas caíam em grande quantidade dos galhos das árvores da rua, dos postes, dos caminhões, pelas guias e pelas calçadas...A casa de minha cunhada era térrea com um lindo jardim a frente e ficava inteirinha enfeitada para o carnaval...até mesmo colocávamos máscaras por nós confeccionadas com massa caseira nas paredes da casa. Tudo isso era preparado e pensado com carinho pois o carnaval era uma data esperada com ansiedade ...o planejamento e a confecção das fantasias das crianças eram feitos com meses de antecedência para que a alegria e o prazer durasse apenas três dias, mas o envolvimento era tanto, que justificava todo o trabalho, contagiando a todos .
Naquele tempo , o lança-perfumes ainda não era proibido e fazia muito sucesso...ainda lembro das garrafas de metal brilhante, o odor característico de seu perfume e o contato gelado do líquido em nossa pele.
Um corria atrás do outro, lançando seu perfume.
Vejam essas fotos: elas mostram eu, meu marido e as crianças de nossa família (minha filha, meus sobrinhos e sobrinhas) fantasiadas para os carnavais da década de 40 no Itaim-bibi. O local é a atual Rua Renato Paes de Barros. Reparem que, ao fundo pode-se ver o prédio do Cine Lumiére sendo construído.
Hoje, o carnaval , para a maioria das pessoas, está reduzido a imagens televisivas...que não escolhemos ...e são escolhidas e impostas por alguém para que assistamos passivamente.....Pelo menos, ainda podemos julgar e , se quisermos, temos a liberdade de usar o ato de desligar. No entanto, olhando essas imagens da televisão, creio que fica difícil explicar um conceito cultural como era o carnaval antigo...é difícil explicar aos jovens de hoje o que seja um carnaval alegre tal como o que existia antigamente...um carnaval em que a família participava, sem brigas, bebidas, e escândalos... simplesmente, um inocente carnaval de bairro, de uma comunidade feliz.
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